terça-feira, 23 de janeiro de 2018

Trilha sonora de ‘Boca de Ouro’ realça tom carioca da patética tragédia de Nelson
Com referências carnavalescas que vão além das serpentinas e confetes que vão colorindo progressivamente a cena de tom inicialmente chiaroscuro, a inebriante encenação de Boca de Ouro pelo diretor mineiro Gabriel Villela – recém-estreada na cidade do Rio de Janeiro (RJ), no teatro do Sesc Ginástico, após vitoriosas temporadas por várias cidades do Brasil – tem trilha sonora que realça a carioquice patética dessa tragédia melodramática escrita em 1959 pelo maior dramaturgo do Brasil – Nelson Rodrigues (1912 – 1980), pernambucano de alma e vivência carioca – e apresentada pela primeira vez nos palcos em 1960.
Decorridos 58 anos da estreia nacional da peça, Boca de Ouro está em cena, vivo, na cidade em que está ambientada a trama pirandelliana protagonizada pelo bicheiro conhecido como Drácula de Madureira, o Boca de Ouro do título, ora encarnado com brilho (inclusive o dos figurinos idealizados pelo próprio Gabriel Villela) na pele do ator Malvino Salvador.
Dentro desse tragicômico quadro carioca, chega a ser sutilmente irônico que o pano abra com interpretação da marcha Cidade maravilhosa (André Filho, 1934) nas vozes do elenco extraordinário que inclui atores como Mel Lisboa (expressionista como Celeste), Claudio Fontana (Leleco, personagem que mais bem exemplifica o caráter patético desse microcosmo do subúrbio carioca retratado pelo dramaturgo), Lavínia Pannunzio (a ex-amante do bicheiro, Guigui, cujos humores alteram a perspectiva e a ótica dos acontecimentos relativos ao mitológico Boca de Ouro) e Leonardo Ventura (na pele do também patético Agenor, marido de Guigui).
A ironia de abrir o espetáculo com a marcha Cidade maravilhosa se amplifica à medida em que o texto, reapresentado pelo encenador com doses fartas de farsa e música, vai descortinando os bastidores de fervilhante subúrbio carioca povoado por crimes, traições, ressentimentos, desejos, amores e ódios passionais. Na cena, o diretor evoca o ambiente de uma gafieira dos anos 1950 que, na prática, se insinua mais como um cabaré kitsch. Até porque o único músico em cena é o pianista Jonatan Harold, autor dos arranjos criados sob a direção musical de Babaya Morais.
Os atores Malvino Salvador e Mel Lisboa na peça ‘Boca de Ouro’ (Foto: João Caldas Fº)
Como a música perpassa toda a cena, comentando a cena com ternura e/ou acidez, há uma crooner no palco, função de Mariana Elisabetsky. É a crooner quem dá voz a composições como Ave Maria no morro (Herivelto Martins, 1942), A noite do meu bem (Dolores Duran, 1959) e Vingança (Lupicínio Rodrigues, 1951) – músicas que, independentemente das origens dos respectivos compositores, surgiram no Rio escancarado por Nelson Rodrigues em Boca de Ouro com as cores vivas do melodrama, suavizadas pelos tons de humor impiedoso com a miséria humana.
Nesse reencontro do genial dramaturgo com um dos maiores encenadores do teatro brasileiro de todos os tempos (união póstuma que, cabe lembrar, já gerou em 1994 memorável abordagem de A falecida, outra tragédia carioca de Nelson), a música é usada de forma muitas vezes engenhosa por Gabriel Villela, como na cena em que Boca de Ouro ginga, triunfante, ao som do toque instrumental do choro Brasileirinho (Waldir Azevedo, 1949). Ou ainda na cena em que Na cadência do samba (Ataulfo Alves e Paulo Gesta, 1962) marca uma das mortes de Leleco contadas sob a ótica mutante de Guigui.
Tudo é música nessa fascinante encenação de Boca de Ouro, até o tamborilar ritmado dos dedos sobre mesas que simula com perfeição os sons da batida das máquinas de escrever da redação de um jornal. Se o samba Não deixe o samba morrer (Edson e Aloisio, 1975) sublinha o pedido final de Boca na hora da morte, outro samba, De frente pro crime (João Bosco e Aldir Blanc, 1974) arremata a tragédia passional como recorte da violência cotidiana de uma cidade nem sempre maravilhosa que serviu de cenário para Nelson Rodrigues sublinhar o que há de mais patético na existência humana.

G1 

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