Trilha sonora de ‘Boca de Ouro’ realça tom carioca da patética tragédia
de Nelson

Com referências
carnavalescas que vão além das serpentinas e confetes que vão colorindo
progressivamente a cena de tom inicialmente chiaroscuro, a inebriante encenação de Boca de Ouro pelo diretor mineiro Gabriel Villela –
recém-estreada na cidade do Rio de Janeiro (RJ), no teatro do Sesc Ginástico,
após vitoriosas temporadas por várias cidades do Brasil – tem trilha sonora que
realça a carioquice patética dessa tragédia melodramática escrita em 1959 pelo
maior dramaturgo do Brasil – Nelson Rodrigues (1912 – 1980), pernambucano de
alma e vivência carioca – e apresentada pela primeira vez nos palcos em 1960.
Decorridos 58 anos
da estreia nacional da peça, Boca de Ouro está
em cena, vivo, na cidade em que está ambientada a trama pirandelliana
protagonizada pelo bicheiro conhecido como Drácula de Madureira, o Boca de Ouro do título, ora encarnado com
brilho (inclusive o dos figurinos idealizados pelo próprio Gabriel Villela) na
pele do ator Malvino Salvador.
Dentro desse
tragicômico quadro carioca, chega a ser sutilmente irônico que o pano abra com
interpretação da marcha Cidade
maravilhosa (André Filho, 1934) nas vozes
do elenco extraordinário que inclui atores como Mel Lisboa (expressionista como
Celeste), Claudio Fontana (Leleco, personagem que mais bem exemplifica o
caráter patético desse microcosmo do subúrbio carioca retratado pelo
dramaturgo), Lavínia Pannunzio (a ex-amante do bicheiro, Guigui, cujos humores
alteram a perspectiva e a ótica dos acontecimentos relativos ao mitológico Boca
de Ouro) e Leonardo Ventura (na pele do também patético Agenor, marido de
Guigui).
A ironia de abrir o
espetáculo com a marcha Cidade
maravilhosa se amplifica à medida em que o
texto, reapresentado pelo encenador com doses fartas de farsa e música, vai
descortinando os bastidores de fervilhante subúrbio carioca povoado por crimes,
traições, ressentimentos, desejos, amores e ódios passionais. Na cena, o
diretor evoca o ambiente de uma gafieira dos anos 1950 que, na prática, se
insinua mais como um cabaré kitsch.
Até porque o único músico em cena é o pianista Jonatan Harold, autor dos
arranjos criados sob a direção musical de Babaya Morais.
Os
atores Malvino Salvador e Mel Lisboa na peça ‘Boca de Ouro’ (Foto: João Caldas
Fº)
Como a música
perpassa toda a cena, comentando a cena com ternura e/ou acidez, há uma crooner no palco, função de Mariana Elisabetsky. É
a crooner quem dá voz a composições como Ave Maria no morro (Herivelto Martins, 1942), A noite do meu bem (Dolores Duran, 1959) e Vingança (Lupicínio Rodrigues, 1951) – músicas que,
independentemente das origens dos respectivos compositores, surgiram no Rio
escancarado por Nelson Rodrigues em Boca de Ouro com
as cores vivas do melodrama, suavizadas pelos tons de humor impiedoso com a
miséria humana.
Nesse reencontro do
genial dramaturgo com um dos maiores encenadores do teatro brasileiro de todos
os tempos (união póstuma que, cabe lembrar, já gerou em 1994 memorável
abordagem de A
falecida, outra tragédia carioca de Nelson),
a música é usada de forma muitas vezes engenhosa por Gabriel Villela, como na
cena em que Boca de Ouro ginga, triunfante, ao som do toque instrumental do
choro Brasileirinho (Waldir Azevedo, 1949). Ou ainda na cena em
que Na
cadência do samba (Ataulfo Alves e Paulo Gesta,
1962) marca uma das mortes de Leleco contadas sob a ótica mutante de Guigui.
Tudo é música nessa
fascinante encenação de Boca
de Ouro, até o tamborilar ritmado dos dedos
sobre mesas que simula com perfeição os sons da batida das máquinas de escrever
da redação de um jornal. Se o samba Não deixe o samba morrer (Edson e Aloisio, 1975) sublinha o pedido
final de Boca na hora da morte, outro samba, De frente pro crime (João Bosco e Aldir Blanc, 1974) arremata a
tragédia passional como recorte da violência cotidiana de uma cidade nem sempre
maravilhosa que serviu de cenário para Nelson Rodrigues sublinhar o que há de
mais patético na existência humana.
G1
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