
domingo, 16 de setembro de 2012
cultura Pablo Pinheiro / Divulgação
teatro de rua
Shakespeare com sotaque
Em apresentações de rua dirigidas por Gabriel Villela, clássicos do dramaturgo inglês misturam o clima do período elisabetano a tradições da cultura popular brasileira
- A A +Mariana Delfini
Bravo! - 08/2012
[img01] Guinchando como um porco, o duque de Gloucester percorre a arena. De braço atrofiado, o nobre corcunda, que se coroou rei da Inglaterra no final do século 15 como Ricardo III, inspirou a tragédia que leva seu nome, escrita por William Shakespeare por volta de 1591. Nela, o protagonista perpetra uma série de assassinatos - do irmão, dos sobrinhos e de membros de sua dinastia - para conquistar o trono. Se no texto original o bravo javali branco, símbolo do monarca, já sugeria perversidade, na encenação do grupo potiguar Clowns de Shakespeare, os trejeitos de bicho sanguinário não deixam dúvidas sobre sua torpeza. Dirigida pelo mineiro Gabriel Villela, Sua Incelença Ricardo III chega a São Paulo neste mês. A peça tem um picadeiro como palco e um soberano que, interpretado pelo ator Marco França, exibe um sotaque nordestino bem marcado, à semelhança do título adaptado da montagem. Do encontro da cultura popular com a Inglaterra medieval, surge um sertão de cavalheirescas intrigas.
O rock inglês se mistura a canções tradicionais brasileiras e a "incelenças", cantigas que embalam os mortos no Nordeste. No picadeiro, a céu aberto, o drama histórico do Bardo ganha uma cadência diferente da austeridade vista em outros palcos. Trata-se, no entanto, de um Shakespeare legítimo - justamente pelo aspecto popular. Entre os séculos 16 e 17, nenhum outro dramaturgo inglês era tão encenado. "O caráter popular do teatro elisabetano encontra uma equivalência muito poderosa na linguagem de rua do Brasil", defende Fernando Yamamoto, diretor artístico dos Clowns de Shakespeare. Fundada em 1993, a trupe não está sozinha nessa transposição histórica e geográfica. Importante influência para eles, o Grupo Galpão estreou em 1992 uma versão mineiro-sertaneja de Romeu e Julieta, que volta ao cartaz neste mês, também em São Paulo.
Na montagem, os atores do Galpão aliaram a linguagem de rua a pesquisas sobre a cultura mineira, a arquitetura barroca e o sertão de Guimarães Rosa. Dirigidos pelo mesmo Gabriel Villela, vestiram pernas de pau e entoaram canções de roda, em apresentações no Brasil e no exterior - já estiveram três vezes em Londres, duas delas no Shakespeare¿s Globe, reconstrução do Globe Theatre, de que Shakespeare era dono. Depois do espetáculo realizado ali em 2000, Mark Rylance, então diretor artístico da casa, declarou: "O que vimos deve ser próximo do espírito da companhia de Shakespeare".
ENTRE GALOS E URSOS
Em tabernas e nos pátios de estalagens, o teatro dividia espaço com tiro ao alvo, rinhas de galo e outras lutas (entre humanos, cachorros ou ursos). Era, no período elisabetano, mais uma opção barata de divertimento para as massas. Heterogênea, a plateia conversava e bebia muito durante os espetáculos. Esse clima pouco compenetrado não mudou depois de 1570, quando as peças começaram a migrar para teatros públicos, como o Globe (com até 2 mil pessoas de pé no pátio ou, por alguns pennies a mais, em galerias), e anfiteatros, aos moldes do Coliseu romano (com capacidade para 20 mil pessoas). Encenando Shakespeare, o Grupo Galpão também atrai multidões. Em junho, nas apresentações de Romeu e Julieta no Festival Internacional de Teatro Palco & Rua de Belo Horizonte (FIT-BH), mais de 5 mil pessoas se aglomeraram em lugares como a Praça do Papa e o Parque Ecológico da Pampulha para acompanhar a terrível história de amor. Na opinião de Gabriel Villela, a plateia da rua é a mais exigente. "Se não captam o olhar dos atores, as pessoas simplesmente vão embora", afirma. "E expressam a emoção na hora, rindo ou vaiando - não precisam aguardar o momento dos aplausos para os comentários."
CABRA-MACHO
Com texto de Shakespeare e direção de Villela, Romeu e Julieta e Sua Incelença, Ricardo III compõem uma espécie de irmandade, embora os grupos imprimam marcas muito próprias a cada montagem. Em Romeu..., um lirismo quase ingênuo predomina, e a mineirice se deixa notar sobretudo nos ornamentos barrocos. Já Sua Incelença... empresta a irreverência dos palhaços de rua do Rio Grande do Norte. A música, que também embala a peça do Galpão, ganha com os Clowns, por vezes, o estatuto de protagonista. Composta por eles, a opereta que estrutura o terceiro ato se inspira em Dona Militana, importante romanceira da tradição oral potiguar. O humor se evidencia em mortes metafóricas - representadas por um nó num canudinho - e em personagens caricatos, como o preto-velho vivido por Joel Monteiro, que faz as vezes de Eduardo IV. Sir James Tyrrel, interpretado por César Ferrario, vira o cangaceiro Jararaca, com direito a refrão: "Tyrrel cabra-macho, não arrega, não/ Matou dois menino, não teve perdão/ Sufocou os pequeno, mas que aberração".
Ainda dá tempo!
Romeu e Julieta. Com Grupo Galpão. Parque da Independência (r. dos Patriotas, s/n, SP). Dias 13 e 14/9, às 19h. Grátis.
Guinchando como um porco, o duque de Gloucester percorre a arena. De braço atrofiado, o nobre corcunda, que se coroou rei da Inglaterra no final do século 15 como Ricardo III, inspirou a tragédia que leva seu nome, escrita por William Shakespeare por volta de 1591. Nela, o protagonista perpetra uma série de assassinatos - do irmão, dos sobrinhos e de membros de sua dinastia - para conquistar o trono. Se no texto original o bravo javali branco, símbolo do monarca, já sugeria perversidade, na encenação do grupo potiguar Clowns de Shakespeare, os trejeitos de bicho sanguinário não deixam dúvidas sobre sua torpeza. Dirigida pelo mineiro Gabriel Villela, Sua Incelença Ricardo III chega a São Paulo neste mês. A peça tem um picadeiro como palco e um soberano que, interpretado pelo ator Marco França, exibe um sotaque nordestino bem marcado, à semelhança do título adaptado da montagem. Do encontro da cultura popular com a Inglaterra medieval, surge um sertão de cavalheirescas intrigas.
O rock inglês se mistura a canções tradicionais brasileiras e a "incelenças", cantigas que embalam os mortos no Nordeste. No picadeiro, a céu aberto, o drama histórico do Bardo ganha uma cadência diferente da austeridade vista em outros palcos. Trata-se, no entanto, de um Shakespeare legítimo - justamente pelo aspecto popular. Entre os séculos 16 e 17, nenhum outro dramaturgo inglês era tão encenado. "O caráter popular do teatro elisabetano encontra uma equivalência muito poderosa na linguagem de rua do Brasil", defende Fernando Yamamoto, diretor artístico dos Clowns de Shakespeare. Fundada em 1993, a trupe não está sozinha nessa transposição histórica e geográfica. Importante influência para eles, o Grupo Galpão estreou em 1992 uma versão mineiro-sertaneja de Romeu e Julieta, que volta ao cartaz neste mês, também em São Paulo.
Na montagem, os atores do Galpão aliaram a linguagem de rua a pesquisas sobre a cultura mineira, a arquitetura barroca e o sertão de Guimarães Rosa. Dirigidos pelo mesmo Gabriel Villela, vestiram pernas de pau e entoaram canções de roda, em apresentações no Brasil e no exterior - já estiveram três vezes em Londres, duas delas no Shakespeare¿s Globe, reconstrução do Globe Theatre, de que Shakespeare era dono. Depois do espetáculo realizado ali em 2000, Mark Rylance, então diretor artístico da casa, declarou: "O que vimos deve ser próximo do espírito da companhia de Shakespeare".
ENTRE GALOS E URSOS
Em tabernas e nos pátios de estalagens, o teatro dividia espaço com tiro ao alvo, rinhas de galo e outras lutas (entre humanos, cachorros ou ursos). Era, no período elisabetano, mais uma opção barata de divertimento para as massas. Heterogênea, a plateia conversava e bebia muito durante os espetáculos. Esse clima pouco compenetrado não mudou depois de 1570, quando as peças começaram a migrar para teatros públicos, como o Globe (com até 2 mil pessoas de pé no pátio ou, por alguns pennies a mais, em galerias), e anfiteatros, aos moldes do Coliseu romano (com capacidade para 20 mil pessoas). Encenando Shakespeare, o Grupo Galpão também atrai multidões. Em junho, nas apresentações de Romeu e Julieta no Festival Internacional de Teatro Palco & Rua de Belo Horizonte (FIT-BH), mais de 5 mil pessoas se aglomeraram em lugares como a Praça do Papa e o Parque Ecológico da Pampulha para acompanhar a terrível história de amor. Na opinião de Gabriel Villela, a plateia da rua é a mais exigente. "Se não captam o olhar dos atores, as pessoas simplesmente vão embora", afirma. "E expressam a emoção na hora, rindo ou vaiando - não precisam aguardar o momento dos aplausos para os comentários."
CABRA-MACHO
Com texto de Shakespeare e direção de Villela, Romeu e Julieta e Sua Incelença, Ricardo III compõem uma espécie de irmandade, embora os grupos imprimam marcas muito próprias a cada montagem. Em Romeu..., um lirismo quase ingênuo predomina, e a mineirice se deixa notar sobretudo nos ornamentos barrocos. Já Sua Incelença... empresta a irreverência dos palhaços de rua do Rio Grande do Norte. A música, que também embala a peça do Galpão, ganha com os Clowns, por vezes, o estatuto de protagonista. Composta por eles, a opereta que estrutura o terceiro ato se inspira em Dona Militana, importante romanceira da tradição oral potiguar. O humor se evidencia em mortes metafóricas - representadas por um nó num canudinho - e em personagens caricatos, como o preto-velho vivido por Joel Monteiro, que faz as vezes de Eduardo IV. Sir James Tyrrel, interpretado por César Ferrario, vira o cangaceiro Jararaca, com direito a refrão: "Tyrrel cabra-macho, não arrega, não/ Matou dois menino, não teve perdão/ Sufocou os pequeno, mas que aberração".
Ainda dá tempo!
Romeu e Julieta. Com Grupo Galpão. Parque da Independência (r. dos Patriotas, s/n, SP). Dias 13 e 14/9, às 19h. Grátis.
http://planetasustentavel.abril.com.br/noticia/cultura/apresentacao-rua-dirigida-gabriel-villela-shakespeare-cultura-brasileira-popular-699627.shtml

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