
terça-feira, 1 de janeiro de 2013
02/09/2012 | NO SESC
Shakespeare a partir da prosódia nordestina
Grupo de teatro Clowns de Shakespeare é um destaques de hoje da programação de abertura do Sesc
Shakespeare consegue retratar o humano pela sua essência, por isso que, mesmo tendo quase 500 anos e um oceano de distância entre a Inglaterra elisabetana e o Nordeste brasileiro do século XXI, a obra continua atual e viva - Fernando Yamamoto, diretor da companhia - Por: Divulgação
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Notícia publicada na edição de 02/09/2012 do Jornal Cruzeiro do Sul, na página 001 do caderno C - o conteúdo da edição impressa na internet é atualizado diariamente após as 12h.
Andrea Alves
andrea.alves@jcruzeiro.com.br
Shakespeare é universal, o que é uma forma de afirmar que ele é brasileiro. Além de usar essa universalidade de forma natural, os grupos teatrais brasileiros estão se tornando especialistas em fazer a transição da literatura inglesa para a cultura brasileira. Uma das montagens atuais brinca, por assim dizer, com "Ricardo III", uma das obras mais conhecidas e densas do dramaturgo e que narra as falcatruas e os crimes que o personagem principal comete para conseguir o trono inglês. Salpicado com generosas doses de brasilidade, "Sua Incelença, Ricardo III" é o mais recente trabalho do grupo de teatro Clowns de Shakespeare. É também a sexta obra do inglês produzida por essa companhia. Antes eles fizeram duas montagens de "Sonho de uma Noite de Verão" - uma com o nome origina, e outra sob o nome de "Sonhos de uma Noite Só" -"Noite de Reis", "A Megera DoNada" (adaptação de "A Megera Domada") e "Muito Barulho por Quase Nada".
Detentor de vários prêmios, o grupo do Rio Grande do Norte já passou por várias cidades brasileiras e participou de diversos festivais apresentando suas obras nascidas das pesquisas com foco no ator, musicalidade em cena e corpo, incrementadas pela lírica, pela poética e pela comédia do universo clownesco. Segundo os integrantes, as comédias shakespearianas vieram a contribuir para essa pesquisa. A companhia já recebeu importantes prêmios, entre eles o Shell SP 2009, pelo figurino do espetáculo O Capitão e a Sereia, e o APCA (Associação Paulista de Críticos de Artes) e FEMSA/Coca-Cola, ambos com o espetáculo "Fábulas", para direção (Fernando Yamamoto) e ator (Rogério Ferraz), em 2007.
"Sua Incelença, Ricardo III" será apresentado hoje, às 19h, no Anfiteatro do Sesc (o evento faz parte da programação de inauguração dessa unidade). A entrada é gratuita e os convites devem ser retirados com uma hora e meia de antecedência. O Sesc fica na Barão de Piratininga, 555, Jardim Faculdade. Mais informações: ww.sescsp.org.br.
A direção geral da peça é de Gabriel Villela. Estão no elenco: Camille Carvalho, Dudu Galvão, César Ferrario, Joel Monteiro, Marco França, Paula Queiroz, Renata Kaiser e Titina Medeiros. A peça é do final de 2010 e entre muitas apresentações ainda agendadas, vai participar do Festival Santiago a Mil, no Chile, e Festival Tchecov, em Moscou, em 2013. Em entrevista ao Mais Cruzeiro, o diretor do Clowns de Shakespeare, Fernando Yamamoto, revela a próxima montagem. "Será o Hamlet, com direção do paulista Marcio Aurelio". Confira:
Qual a essência do teatro de rua presente nessa peça?
É um espetáculo que conta a fábula shakespeariana a partir do universo do circo mambembe, de beira de estrada, lona furada, muito comum no interior brasileiro, em especial no nordeste.
E o que tem especificamente de clown nesse trabalho?
Além de alguns personagens serem construídos como palhaços, como por exemplo dois assassinos que, já no texto original, são personagens muito simples, do povo e atrapalhados, ou seja, já trazem essa verve clownesca. O espetáculo é todo contato a partir da lógica subversiva do palhaço, numa relação de triangulação com o público que vem da técnica de clown, tão importante para a formação do grupo.
O espetáculo, riquíssimo visivelmente, ainda tem uma variedade de canções populares, canções nordestinas e até uma pitada de modernidade, é isso mesmo?
Exatamente. Tanto no tratamento visual quanto no trabalho musical, o espetáculo traz uma fusão das referências nordestinas com elementos universais, a começar pelo próprio texto, um Shakespeare sendo contado a partir da prosódia nordestina. O cenário e o figurino trazem uma mistura de tecidos muito nobres, como sedas, palhas delicadíssimas importadas da África, com materiais mais brutos, comuns no sertão, como o couro e o cipó. Na parte musical, o Gabriel Villela vem a Natal propondo o rock inglês como elemento de conexão do nosso trabalho com o país de origem do Shakespeare, porém com a Inglaterra contemporânea. Assim, no espetáculo, surge Queen, Supertramp, dentre outros. No entanto, no decorrer do processo sentimos a necessidade de mergulhar também no universo da música nordestina e acabamos encontrando essa fusão entre os dois universos, trazendo Luiz Gonzaga e as incelenças para dialogar com o rock.
E como foi essa questão de trabalhar com as incelenças? É a primeira vez que vocês utilizam esse recurso?
As incelenças são músicas de encomenda, muito comuns no interior nordestino, em que carpideiras são contratadas para chorar e cantar à beira do caixão para que o morto chegue bem aos céus. Como estávamos lidando com uma história que trata dessa carnificina, em que tantos assassinatos acontecem para que o protagonista consiga atingir seu objetivo de se tornar rei, achamos por bem fazer uma pesquisa sobre as incelenças, para usar como base musical que conduz todo o espetáculo. Além disso, ela também acaba batizando o espetáculo, brincando com essa corruptela do pronome de tratamento "excelência", que é a origem da palavra.
Vocês nasceram em 1993. Tiveram influências também do grupo Galpão, que um ano antes montou Romeu e Julieta?
O Galpão é, sem dúvida nenhuma, a nossa maior referência desde que surgimos. Nascemos sob os ecos do "Romeu e Julieta", provavelmente o espetáculo mais importante do teatro brasileiro dos últimos 20, 30 anos. Quando completamos nossa primeira década de vida, tivemos a felicidade de convidar o Eduardo Moreira, um dos fundadores do Galpão, para dirigir "Muito Barulho por Quase Nada" junto comigo. Três anos depois, reeditamos essa parceria na direção de "O Casamento do Pequeno Burguês", de Brecht. Desde então, o Eduardo se transforma em uma espécie de consultor permanente do grupo. Essa relação com o Eduardo nos aproximou também não só de todos os integrantes do Galpão, que hoje são amigos nossos, como também nos ajudou a estabelecer parcerias profissionais com diversos parceiros do Galpão, como o Ernani Maletta e a Babaya, na parte musical (que também fazem parte da equipe do Ricardo III), a visagista Mona Magalhães, o consultor de gestão Rômulo Avelar e, principalmente, o próprio Gabriel Villela, diretor do "Romeu e Julieta", que hoje também é diretor do "Sua Incelença, Ricardo III", e uma espécie de iminência parda no grupo.
Como foi trabalhar com Ricardo III especificamente? Pode resumir como foi esse processo, a criação, a adaptação que foi tão bem recebida por crítica e por público?
Foi uma experiência incrível trabalhar com o Gabriel Villela e toda a sua genialidade, o que fez dele um dos principais encenadores do país. Foi um processo muito feliz, em que, apesar de já termos bastante experiência com a obra shakespeariana, mergulhamos pela primeira vez num texto não-cômico. Apesar de contarmos essa tragédia pela lógica do palhaço, com elementos mais risíveis, o peso da fábula do Shakespeare está todo lá, com toda a crueldade e sanguinolência dessa história de ambição pelo poder.
O que ao mesmo tempo é belo e interessante, é que montagens como essa fazem parecer que as obras de Shakespeare nasceram para serem encenadas no Brasil. O intercâmbio e as adaptações da obra de Shakespeare são de fato um casamento certeiro quanto a união da literatura shakespereana com a cultura brasileira?
Sem dúvida nenhuma. O mérito não é só nosso e sim do próprio Shakespeare. A genialidade do bardo está aí, é isso que faz com que sua obra seja universal. Ele consegue retratar o humano pela sua essência, por isso que, mesmo tendo quase 500 anos e um oceano de distância entre a Inglaterra elisabetana e o Nordeste brasileiro do século XXI, a obra continua atual e viva. Desta mesma forma, o homem de cada época e lugar vai encontrar nas palavras shakespearianas aquilo que lhe toca mais diretamente, que lhe faz sentido, porque sua obra é tão rica e completa, que vai sempre dizer muito para a humanidade. Foi assim até hoje e posso lhe garantir que será assim para sempre.

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