terça-feira, 8 de dezembro de 2015

Está com tudo  e não está prosa 

Trajetória - Aos 74 anos e prestes a completar 40 de carreira, Teuda Bara está a mil por hora

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PUBLICADO EM 14/11/15 - 04h00
Durante sua passagem pelo Teatro Oficina, em São Paulo, no início dos anos 1980, a atriz Teuda Bara, 74, descobriu que estava grávida de seu segundo filho. Recebeu, dos colegas de elenco, o conselho de que era melhor abortar, afinal, viver de teatro já era suficientemente difícil com um só. Dividida, ela sofria entre o argumento racional da dificuldade de criar mais um filho e a vontade de ter o bebê.
Um dia, enquanto o grupo tomava café, José Celso Martinez Correa, diretor do Oficina, a abraçou por trás, pôs as mãos em sua barriga e disse: “Não aborta! Não vai abortar! Vai ter esse filho, sim! Você quer, vai ter esse filho e vai tê-lo no palco! Ele vai nascer e ainda vai ser mais um artista pro mundo!”.
A profecia de Zé Celso acabou se cumprindo. E é ao lado do filho, Admar Fernandes, que ela sobe ao palco com o espetáculo “Doida”, em cartaz neste fim de semana em BH. A peça, juntamente com o perfil biográfico “Comunista Demais para Ser Chacrete”, do escritor João Santos, a ser lançado em dezembro, celebra os quase 40 anos de carreira e 75 de vida – ambos completados ano que vem – de uma das atrizes mais conhecidas do teatro mineiro.

Também uma das fundadoras do Grupo Galpão – e envolvida com o próximo trabalho da companhia, que realiza mostra de processo de ensaio de seu novo espetáculo em sua sede, do dia 22 ao 25 – é uma figura cuja gargalhada deliciosa “denuncia” sua presença e basta ter seu nome mencionado com quem a conhece de perto para fazer surgir histórias e mais histórias.
Singular
“A Teuda é muito singular, única no mundo, daquelas que quanto mais você viaja, conhece gente, mais ela faz falta na sua vida”, comenta o diretor Gabriel Villela, que dirigiu o Galpão nos espetáculos “Romeu e Julieta” (1992), “A Rua da Amargura” (1994) e “Os Gigantes da Montanha” (2013). “E ela deixa claro que é soberana, uma rainha, mas não é despótica. A Teuda é Minas. Depois dos 50 anos, a gente não é mais aquilo que é, somos o currículo que temos e a Teuda é um currículo superlativo, que não se enquadra nos padrões convencionais de vida, de estrada”.
Sua singularidade já começa pelo nome. Era para ter sido Theoda, nome de origem grega que quer dizer “a enviada de deus”, como queria a mãe, dona Helena, que era enfermeira e quis homenagear uma irmã de caridade da Santa Casa, onde trabalhou. Mas o cartório registrou Teuda.
O sobrenome Magalhães Fernandes deu lugar ao Bara – referência e homenagem à estrela hollywoodiana Theda Bara, de “Cleópatra” (1917) –, depois de uma longa jornada que incluiu, entre outras estripulias, ser expulsa (por querer) de um colégio interno, terminar um namoro de oito anos por uma simples ida ao edifício Maletta, namorar um ex-trapezista alemão do Circo Garcia, que deixou a trupe para ficar com ela e a seu lado conhecer todas as boates de Belo Horizonte da época, cursar ciências sociais, viver em comunidades hippies e até ser convidada pelo Chacrinha em pessoa para se tornar chacrete. Tudo isso para finalmente culminar no teatro. “Foi o Adyr Assumpção (seu companheiro em outro grupo que ajudou a fundar antes do Galpão, o Fulias Banana), quando estávamos fazendo ‘Triptolemo 17’ (em 1977) quem escolheu o sobrenome, eu nem fiquei sabendo. Ele deu uma entrevista prum jornal e me citou como a atriz Teuda Bara. Quando vi, até me assustei. Antes disso usava só Teuda, nem me considerava atriz ou artista, estava só tateando nesse universo, querendo aprender”, diz.
Um de seus grandes incentivadores foi o ator e diretor Eid Ribeiro. “Quando eu resolvi abandonar as ciências sociais, a primeira coisa que fiz foi procurá-lo, porque ele sempre me dizia ‘você tem que fazer teatro, você tem que fazer teatro. Porque você é muito doida!”, lembra. “E ele tinha razão, eu precisava mesmo fazer teatro”. Para Eid, era preciso canalizar toda aquela energia criadora. “Ela é uma pessoa de personalidade muito marcante, muito esfuziante. Achava que no teatro podia se dar bem”, diz.
Estrada
Em quase quatro décadas – mais de três delas, no Galpão – não só as histórias são muitas, mas também as emoções. “É muito bonito ir a lugares onde não há espaços de teatro. Por isso é bom fazer teatro de rua”, afirma. “Na peça ‘Till’, tem uma hora que eu fico atrás do pano, esperando minha hora de entrar. É quando eu vejo a cara do público e é a coisa mais linda ver o povo rir, se assustar, se emocionar”.
Além das experiências por todas as partes do Brasil, são muitas as memórias felizes no exterior. “A gente quase nunca traduz e isso não compromete em nada o interesse do público. No Uruguai, por exemplo, nós já fomos umas quatro ou cinco vezes e sempre temos que abrir sessões extras”, diz. “Numa das idas, a gente morreu de rir quando viu: cinco senhorinhas de braços dados, indo ao teatro, todas enfeitadinhas, bonitinhas”.
Foi numa dessas apresentações no exterior que ela acabou indo parar no Cirque du Soleil. O diretor Robert Lepage a viu fazendo “Romeu e Julieta” no Shakespear’s Globe, em Londres. Convidado para montar o espetáculo “Kà” na companhia canadense, chamou Teuda para fazer testes para um papel. “Eu acabei enviando a fita fazendo o que eles pediram só pra verem que eu não dava conta”, lembra.
Mas dava. E passou quatro anos em Las Vegas apresentando o espetáculo. Mas o Galpão estava sempre na cabeça. “Eu não consigo me imaginar sem eles. É o trabalho de toda uma vida”, diz.
Um furacão delicado e afetivo
Teuda Bara é uma figura tão marcante que pouca gente se esquece das primeiras impressões que tiveram ao conhecê-la. Inês Peixoto, sua companheira de Grupo Galpão e diretora do espetáculo “Doida”, lembra bem as suas. “Se não me engano, a primeira vez que a vi foi próximo ao teatro Marília, de blusa branca, sem sutiã, balançando aqueles peitos enormes pela rua e com um sorrisão. Essa imagem ficou marcada”, diz. “Depois nós fomos trabalhar juntas e eu a conheci de fato, com sua simpatia e carisma transbordantes, coração aberto e espírito feliz”.
A maneira livre como Teuda sempre levou a vida, mesmo num contexto de grande repressão à liberdade da mulher, mais que um exemplo, é uma inspiração. “Tenho muita admiração e respeito por essas mulheres que me antecederam no mundo da arte, da escolha de ser atriz”, declara Inês. “E toda essa história que ela constrói em cima da liberdade, de ser uma mulher transgressora, com certeza abriu caminho para mim e todas as outras que viemos depois dela na vida e na arte”.
 
Essa força feminina combatente sempre foi uma referência muito forte dentro do Galpão, como conta o ator Rodolfo Vaz, ex-integrante do grupo. “É uma pessoa com muitas marcas, da luta contra a ditadura, de ser filha de militar, ter sido virgem até os 27 anos, ter criado dois filhos sem se casar e fazer teatro numa época muito mais difícil. Nesses 146 anos de vida, ela já passou por muitas opressões e enfrentou tudo”.
 
Onde quer que Teuda chegue, ela provoca uma revolução. É assim que Yara de Novaes, que a dirigiu no espetáculo “Tio Vânia (Aos que Vierem Depois de Nós)” (2011), define sua presença. “É difícil achar um adjetivo para ela, porque ela cabe em tantos. Sua figura provoca interesse porque ocupa espaço, transforma o lugar quando chega”, comenta. “E além de ser esse talento, essa performer – porque ela é uma atriz, mas sobretudo é uma performer – é muito amorosa e delicada nas suas relações, tem muita lealdade. É alguém desprovido de sarcasmo, de ironias. E isso, a meu ver, é muito louvável. Principalmente hoje, quando as pessoas estão sempre destruindo umas às outras com humor indireto”.
 
Alguém para contar a história
Foi durante seu período como estagiário do Galpão que o escritor João Santos resolveu transformar Teuda em objeto de sua escrita. “Essa ideia de escrever sobre ela sempre pairou pelos ares do Galpão, porque ela tem casos muito importantes, que têm a ver com a história de BH, do teatro”, diz. 
 
Então, para se formar em jornalismo, ele escolheu a atriz como objeto de seu trabalho de conclusão de curso e escreveu o livro “Comunista Demais para Ser Chacrete”, que tem lançamento previsto para dezembro. “Durante o processo, o Galpão estava rodando com o ‘Tio Vânia’ e eles foram para o Rio. Eu, no meu desespero, resolvi ir atrás deles e fiquei a temporada inteira vendo o espetáculo todo dia e conversando com a Teuda nas horas vagas. Foi ótimo, porque como estava todo mundo no mesmo hotel, os atores do grupo também conversavam, provocavam. Afinal, são pessoas que estão com ela há mais de 30 anos”, conta.
 
A história que dá título ao livro, João ouviu primeiro do ator Rodolfo Vaz: nos anos 1970, enquanto ainda era aluna de ciências sociais da Fafich, Teuda fez parte do grupo que recebeu Chacrinha em uma visita à UFMG. Sob um pé de manga na avenida do Contorno, Abelardo Barbosa passou uma noite inteira a convidando para ir embora para o Rio, integrar seu time de dançarinas.
 
E ela dizia “eu não posso! Sou gorda, estudante de ciências sociais, comunista. Não posso ser chacrete!”. E ele rebatia “Eu faço programa pro trabalhador, classes C e D. O povo gosta de mulher assim!”. “E, no Galpão, ela é o contrário”, diz João. “É chacrete demais para ser comunista. Não que ela não seja politizada, mas o desbunde é de enormes proporções”.
 http://www.otempo.com.br/pampulha/reportagem/est%C3%A1-com-tudo-e-n%C3%A3o-est%C3%A1-prosa-1.1166592

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