terça-feira, 8 de dezembro de 2015
Um teatro feito da matéria dos sonhos: Os
gigantes da montanha e o Grupo Galpão
A theater made of the dreams matter: The giants of the
mountain and the Galpão Group
Martha de Mello Ribeiro¹
DOI: http:/dx.doi.org/10.5965/1414573101242015186
Um teatro feito da matéria dos sonhos: Os gigantes da montanha e o
Grupo Galpão
187 Urdimento, v.1, n.24, p186-196 julho 2015 Martha de Mello Ribeiro
Abstract
The question that followed Pirandello
in his reflections about theater,
reflected in his dramaturgical composition,
it was the painful sure of the
impossibility of scenic representation.
In the case of the italian author, the
unactable is in the impossibility of the
actor represent another being. We are
above a way of thinking about theater
that repeals representation from within,
showing that is impossible the act
of play a role, his biggest project was
to make us see the unthinkable, engendering
in his dramaturgy, characters
that represent themselves. Such
thought materializes in a unquestionable
way in “Os Gigantes da Montanha”
(1936) that in its presentation by Grupo
Galpão finds the ideal mean for the
composition of the dreams.
Keywords: Luigi Pirandello; Os Gigantes
da Montanha; Experience; Grupo Galpão.
ISSN: 1414.5731
Resumo
A questão que acompanhou Pirandello
em suas reflexões sobre o teatro, refletida
em sua composição dramatúrgica,
foi a dolorosa certeza da impossibilidade
da representação cênica. No caso do autor
italiano, o irrepresentável encontra-se na
impossibilidade do ator em representar um
outro ser. Estamos diante de um modo de
pensar o teatro que revoga a representação
de dentro, apontando como impossível o
ato de representar um papel; seu projeto
maior foi nos fazer ver o impensável, engendrando
em sua dramaturgia personagens
que se auto-representam. Tal pensamento
se materializa de forma indiscutível
em “Os Gigantes da Montanha” (1936), que
na montagem do Grupo Galpão encontra
os meios ideais para a composição dos sonhos.
Palavras-chave: Luigi Pirandello; Os Gigantes
da Montanha; Experiência; Grupo
Galpão.
¹ Diretora teatral e Professora Dra. Adjunta do Departamento de Arte e do
Programa de Pós-Graduação em Estudos Contemporâneos das Artes da Universidade
Federal Fluminense (UFF), Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
melloribeiro.uff@gmail.com
E-ISSN: 2358.6958
Martha de Mello Ribeiro
Um teatro feito da matéria dos sonhos: Os gigantes da montanha e
o Grupo Galpão
Urdimento, v.1, n.24, p186-196 julho 2015 188
Ele, Hamlet, estranho a todos os lugares onde aponta...
(Stéphane Mallarmé)
Qual é o poder do sonho?
Poderíamos perguntar ao autor italiano Luigi Pirandello (1867-1936), que em sua
dolorosa certeza sobre o impoder da representação engendra “Os gigantes da montanha”
(1936), obra deixada incompleta, originalmente chamada, não por acaso, “Os
fantasmas”. Em vez de personagens, a obra poética do dramaturgo insinua aparições,
fantasmas, que numa certa vila, chamada La Scalogna, comandada pelo mago Cotrone,
questionam - a nós espectadores e aos atores da companhia teatral de Ilse -,
a possibilidade do teatro representativo dar a ver a arte ou a poesia, preso como está
num sistema de regulagem entre o ver e o dizer. Uma inquietante incorporalidade nos
desafia a pensar o “mito da arte”, conforme Pirandello conceituou a peça, ou, como
iremos desenvolver aqui, a questão do irrepresentável, isto é, a impossibilidade do teatro
expressar-se em sua própria língua: o dramático. O que se vislumbra mais uma vez
em Pirandello (e pela última vez antes de sua morte) é o confronto entre essas virtualidades,
chamadas os Scalognati, e a excessiva carnalidade dos atores da companhia,
que insistem em representar um texto poético, provocando, como dirá Pirandello, seu
próprio desaparecimento. Confirmando a não utilidade do teatro de poesia num mundo
habitado por gigantes.
Em nosso entendimento, a questão que acompanhou Pirandello em suas reflexões
sobre o teatro, refletida em sua composição dramatúrgica, foi a dolorosa certeza
da impossibilidade da representação em lidar com certos temas, como o incesto ou
com o phatos, os excessos de qualquer natureza. No caso do autor italiano, o irrepresentável
encontra-se na impossibilidade do ator em representar um outro ser a partir
do modelo dramático. Já que toda representação (o sistema mimético) significa uma
regulagem da visão, o ator acaba procedendo por escolhas em torno do que é possível
e necessário, deixando de fora justamente o que interessava ao dramaturgo italiano:
o irrepresentável, as sombras, as idiossincrasias, os excessos, etc. Tal acontecimento,
a representação de personagens por um ator devotado a construir um personagem
codificado, facilmente reconhecível pelo público, engendraria uma espécie de autoanulação
de ambos os polos, esvaziando a real experiência da arte - que deveria estar
desobrigada de qualquer regulagem, permitindo o fluir livre dos afetos. Essa impossibilidade
aponta uma impotência, ou um “impoder” do teatro regido pelo regime representativo,
assim definido por Rancière (2009, p.31):
Ele se desenvolve em formas de normatividade que definem as condições segundo
as quais as imitações podem ser reconhecidas como pertencendo propriamente a
uma arte e apreciadas, nos limites desta arte, como boas ou ruins, adequadas, ou
inadequadas.
Porém, a teoria rancieriana é muito posterior ao dramaturgo, e Pirandello não
era um teórico, ou um filósofo, ipsis litteris, nunca chegou a engendrar uma teoria sobre
a representação. Mas, como um poeta que era, usou como estratagema a ficção
para se fazer entender. O escritor aponta como “solução” para se preservar a vida da
poesia dramática a autorrepresentação da obra, que se faria não com os atores, mas
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com os próprios personagens: fantasmas, que por algum “milagre” se materializariam
em cena, com corpo e voz.
ILSE: E esta vila, de quem é?
COTRONE: Nossa e de ninguém. Dos Espíritos.
ILSE: Como assim, dos Espíritos?
COTRONE: Exato. Esta vila tem a fama de ser habitada por Espíritos. E por isso,
há muito tempo atrás, foi abandonada por seus antigos donos que de tão apavorados
fugiram, inclusive da ilha.
ILSE: e vocês não acreditam nos Espíritos...
COTRONE: Como não? Nós os criamos!
ILSE: ah, vocês é que os criam...
COTRONE: Perdoe-me Condessa, mas eu não esperava que justamente a senhora
me falasse deste jeito. Como nós, a senhora também deve acreditar neles. Vocês,
atores, oferecem o corpo aos fantasmas para que eles vivam – e eles vivem!
Nós, ao contrário, fazemos dos nossos corpos, os fantasmas. E da mesma forma
os fazemos viver. Os fantasmas... não há nenhuma necessidade de procurá-los
muito longe. Basta fazê-los sair de nós mesmos (Pirandello, 2007, p.880).
Solução fantástica que não nos ajuda a avançar em relação ao pensamento
sobre a representação, mas aponta para uma insatisfação do autor em relação ao
regime representativo de forma tão aguda, que nos permite abrir sua obra para novas
possibilidades no campo estético, aproximando-o das mais recentes teorias sobre a
arte. Fazer do próprio corpo um fantasma é muito mais do que “emprestar” o corpo
ao personagem, como indicado aos atores da estética naturalista. Significa tornar
esse corpo, em certa medida, irrepresentável. Se entendermos juntos a Rancière que
o irrepresentável só existe precisamente no sistema representativo, justamente por
exceder a regulagem das relações entre o ver, o fazer e o dizer presente na conformação
da obra verossímil, a ideia de fantasmas que “agem por si só”, no lugar dos
atores, sem dúvida não se enquadra nas regras do sistema representativo.
Você verá que coisa é I giganti della montagna! É completo, é a orgia da fantasia!
A leveza de uma nuvem sobre a profundidade dos abismos. Risos vigorosos
explodem entre as lágrimas, como trovões entre as tempestades. É tudo suspenso,
aéreo, vibrante, elétrico. Não se pode comparar com nada do que eu fiz até agora.
Você verá, estou tocando o ápice! (Pirandello, 1995, p.648).
Reino da fantasia, da arte e da poesia, “Os gigantes da montanha” foi concebido
por Pirandello para ser sua obra conclusiva, uma espécie de último adeus ao teatro;
como de fato terminou acontecendo. A peça, parafraseando as palavras usadas
pelo autor em 1929, se trata da tragédia de uma atriz que deseja continuar a dar vida
à obra teatral de um jovem poeta morto, idealmente amado por ela. Porém, todas
as tentativas da atriz para fazer com que a obra do poeta seja conhecida e admirada
pela sua beleza e novidade, terminam sempre infrutíferas. Mas, quanto mais se multiplicam
os fracassos, mais a intérprete se aferra na sua defesa. Numa vida errante,
sacrificando sua vida e toda sua riqueza por este ideal, Ilse arrasta consigo uma pequena
companhia de atores incapazes, miseráveis e humildes. Em sua peregrinação,
a atriz, chamada Condessa, e sua companhia de fracassados chegam à vila, onde vive
uma espécie de genius loci (Cotrone), que tentará salvar a companhia de atores e sua
primeira atriz da catástrofe inevitável: a destruição de seus corpos pelos gigantes que
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Martha de Mello Ribeiro Urdimento, v.1, n.24, p186-196 julho 2015 190
habitam a montanha.
Esse pequeno resumo descritivo da peça demonstra que Pirandello não rompe
em definitivo com o sistema representativo, ou melhor, com a ideia de fábula. Há claramente
uma história pregressa que informa aos leitores quem são os personagens
da companhia da Condessa. Mas interessante notar é que não há nenhuma referência
aos personagens que habitam a vila, os Scalognati. Envolvidos por uma aura mágica,
esses personagens-fantasma são apontados por Cotrone como a própria criação. E
como seria possível definir a criação? A ideia de criação toca o limite da língua, não
se deixa operacionar, é um ponto cego, um mistério. O que estamos querendo dizer
é que Pirandello realiza esses personagens da vila em outro registro, buscando uma
outra língua, que ainda não somos capazes (junto com Ilse) de imaginar, pois escapa,
excede ao nosso pensamento. Ao confrontar a companhia teatral de Ilse com os Scalognati,
o dramaturgo nos desafia a viver uma experiência não representável, rebelde:
uma cena que repousa justamente na impossibilidade de se expressar em sua própria
língua, isto é, a partir dos códigos inerentes ao drama, à representação.
A ação proposta por Cotrone é imediata, “[...] basta imaginar e imediatamente
as imagens ganham vida!” (Pirandello, 2013, p. 101). A cena, povoada destes personagens-fantasma,
ultrapassa o teatro em seu paradigma dramático. Mas de que se
trata esse ultrapassamento? Pirandello não vai propor uma nova norma para a representação,
ou um novo modo para o ator representar um personagem; tal feito só iria
substituir um método por outro, e permaneceríamos no sistema representativo, de
produção objetivada. O que o dramaturgo convoca na famosa cena das aparições,
na terceira parte da peça², é algo da natureza do acontecimento, isto é, algo que nos
afeta, sem darmos conta ou mesmo desejarmos, mas que temos vontade de falar:
nossa experiência; que conforme entende o filósofo Jorge Larrosa: “é o que nos pasUm
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o Grupo Galpão
Os Gigantes da Montanha. Grupo Galpão/Direção e concepção: Gabriel Villela.
Foto Ricardo Gama
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Grupo Galpão
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sa, o que nos acontece, o que nos toca” (2014, p.18). E como dirá Cotrone: “A vila
é assim mesmo. Todas as noites fica em estado de música e sonho” (Ibid, p. 96). As
aparições na vila, testemunhada com espanto e estranheza pelos atores, não devem
ser entendidas enquanto delírio, fantasia ou ilusão, mas como uma tentativa de
despertar-nos para a experiência, subvertendo o sentido das coisas, interrompendo
toda representação, enfim, alargando nosso pensamento para além do que ele pode
dominar.
A experiência é algo que (nos) acontece e que às vezes treme, ou vibra, algo que
noz faz pensar, algo que nos faz sofrer ou gozar, algo que luta pela expressão, e
que às vezes, algumas vezes, quando cai em mão de alguém capaz de dar forma
a este tremor, então, somente então, se converte em canto. E esse canto atravessa
o tempo e o espaço. E ressoa em outras experiências e em outros tremores e em
outros cantos (Larrosa, 2014, p.10).
Os gigantes da montanha não é apenas a última peça escrita por Pirandello,
o texto deixado em aberto pelo autor se traduz como o canto de experiência de Pirandello
sobre o teatro. Um canto apaixonado e sofrido da sua experiência no teatro.
Esse canto atravessou o tempo e chegou até o Grupo Galpão, na montagem dirigida
por Gabriel Villela para os 30 anos da companhia mineira. Um outro canto de experiência
sobre o teatro, um outro tremor convertido em canto, ressoa nessa linda
montagem que se debruça sobre o sonho de se fazer teatro, de se cantar o teatro, de
viver a experiência selvagem desse sonho que não se deixa moldar ou aplacar.
Em entrevista concedida a mim em 11 de outubro de 2013 durante o evento
“Encontro com o Grupo Galpão”, que organizei na Universidade Federal Fluminense,
Eduardo Moreira, um dos fundadores do grupo, e a atriz Inês Peixoto, integrante há
vinte e três anos da companhia, assim falam de sua experiência com o teatro e o texto
pirandelliano:
Autor: Queria pegar esse gancho, que eu acho fantástico, em relação ao Os gigantes
da montanha, [...] que é , digamos, o olhar desse autor para toda a trajetória
dele no teatro; e de como o teatro influenciou os seus últimos dez anos de vida,
que foram aqueles mais importantes, pois ele sempre disse que não vivia, e ele
passa a viver a partir do momento que conhece a fundo os porões, os interiores do
teatro, as dificuldades e ao mesmo tempo as generosidades, de tudo de humano
que existe nesse caldeirão que é fazer teatro.
Eduardo: [...] o que eu acho muito lindo do Pirandello como artista, um artista realmente
extraordinário, é que ele mesmo consagrado - conseguiu o prêmio Nobel
de literatura em 1934 - continua se perguntando sobre qual a possibilidade, qual
a natureza do teatro dele, qual a saída do teatro. [...] Existe uma pergunta muito
pungente no “Os gigantes da montanha”: qual é a possibilidade do teatro no mundo
dele. Eu acho que essa pergunta se tornou cada vez mais radical e urgente ao
longo dos anos, eu acho que na nossa época a gente está se perguntando, o que o
teatro tem pra dizer num mundo onde as pessoas tem acesso a tudo, não precisam
² Cf Luigi Pirandello, Os gigantes da montanha. Tradução Maria de Lourdes
Rabetti. Rio de Janeiro: 7Letras, 2013, p. 75-109.
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o Grupo Galpão
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sair de casa, num mundo extremamente dividido e individualizado, onde o espaço
público está completamente esvaziado, num sentido de que as pessoas tem medo
de se encontrar, de ir para as ruas e ver um espetáculo de teatro [...] eu acho que
em 1936 quando Pirandello morre ele tá angustiado e ele propõe ali com “Os gigantes”,
[...] que a saída para o teatro é um mergulho radical na poesia e no sonho.
Inês: E, esse delírio que parece que a peça é um sonho, é um delírio assim do
Pirandello, um delírio que ele construiu durante oito anos, é como um sonho no
qual você lembra de partes, a gente acaba conseguindo que as pessoas tenham
essa sensação, você não está vendo a representação de um sonho, a plateia às
vezes nos dá um retorno de que elas se sentem dentro de um sonho assim, é sensorial,
sabe?! Não importa mais entender, seguir uma história direitinho assim,
às vezes a peça, a gente tem esse retorno, de conseguir pegar a plateia e levar para
um delírio, sabe?! Para uma experiência, isso é interessante também.
O sujeito da informação é o avesso do sujeito da experiência. A montagem de
“Os gigantes da montanha” pelo grupo Galpão foi concebida para um teatro de rua,
lugar de perigos e atravessamentos, lugar para ressoar cantos de experiências.
A palavra experiência, que não é um conceito, mas o que nos acontece e que
nos faz tremer a carne, que não é possível definir, mas apenas cantar, é tudo que nos
acomete, que nos empossa. Pirandello se investia de teatro, e esse canto ressoa na
montagem do Grupo Galpão, nas palavras de Inês e Eduardo, na linguagem do teatro
de rua. Um lugar de passagem, de troca, onde só fica quem é de fato tocado. Esse
canto de experiência toca os limites de nossa língua, pois não é possível encontrar
uma definição, trata-se de vertigem. Larrosa em seu livro “Tremores” nos adverte sobre
o que a experiência não é. E a primeira coisa a fazer é separá-la da informação:
“uma sociedade constituída sob o signo da informação é uma sociedade na qual a
experiência é impossível” (2014, p.20). Evocamos aqui Walter Benjamim (1936) na
afirmação de que o verdadeiro declínio da experiência veio com a proliferação da
informação, que “aspira a uma verificação imediata”. A informação é avessa à conOs
Gigantes da Montanha. Grupo Galpão/Direção e concepção: Gabriel Villela.
Foto Ricardo Gama.
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templação, ao surpreendente, ela é instantânea, vem com uma explicação plausível,
anterior à experiência. Já o canto de experiência é um canto rebelde, avesso à falsa
experiência, à experiência autoritária. O sujeito da experiência é um rebelde, um outsider.
E o palco do sujeito da experiência é a rua. Lugar onde o sujeito encontra-se ex
-posto, vulnerável e em risco: “Por isso é incapaz da experiência aquele a quem nada
lhe passa, a quem nada lhe acontece, a quem nada lhe sucede, a quem nada o toca,
nada lhe chega, nada o afeta, a quem nada o ameaça” (Larrosa, 2014, p.26). O sujeito
da informação é o avesso do sujeito da experiência. A montagem de “Os gigantes da
montanha” pelo grupo Galpão foi concebida para um teatro de rua, lugar de perigos
e atravessamentos, lugar para ressoar cantos de experiências. O extraordinário,
o sonho e o miraculoso escapam a qualquer determinação, e a rua tradicionalmente
é o lugar do artista outsider, do artesão, do prestidigitador. Se pensarmos no sonho
como um desvio da realidade e consequentemente da informação, começamos a
perceber que o sonho é um outro tipo de saber, diferente do científico, um saber que
convoca um outro tempo, um tempo do olhar. E “Os gigantes” do Galpão conseguiu
provocar em nós, espectadores, esse tempo do olhar. Um tempo que rumina lento,
onde saboreamos nossa própria disponibilidade de ser acometido.
Diante do teatro de poesia de Pirandello que ressoa, vibra, no canto de experi-
ência do Galpão, somos acometidos por uma “passividade anterior à oposição entre
ativo e passivo, de uma passividade feita de paixão”, conforme nos diz Larrosa (loc.
cit). Ficamos disponíveis aos pequenos detalhes, aos silêncios, num tempo do olhar
que não costumamos mais ter hoje em dia por falta de tempo ou por medo. Se tudo
se passa muito rápido, muito frenético, acaba que nada nos ocorre. E o Grupo Galpão
é um dos poucos grupos hoje em dia que de fato enfrenta o risco de fazer do teatro
um canto de experiência. Na linguagem popular, no teatro de rua, proposto pelo grupo
e pelo diretor Gabriel Villela, mergulhamos na poesia pirandelliana, e sentindo o
tremor de nossa carne, junto com Ilse, enfrentamos os gigantes. E aqui citamos Benjamim:
“o narrador [ou o sujeito da experiência] é o homem que poderia deixar a luz
tênue de sua narração consumir completamente a mecha de sua vida” (1985, p.221).
E não é isso que os artistas apaixonados fazem?
Os Gigantes da Montanha. Grupo Galpão/Direção e concepção: Gabriel Villela.
Foto Ricardo Gama.
Um teatro feito da matéria dos sonhos: Os gigantes da montanha e
o Grupo Galpão
Martha de Mello Ribeiro Urdimento, v.1, n.24, p186-196 julho 2015 194
Nas entrevistas que concedeu entre 1928 e 1930, Pirandello previa um final
trágico para Ilse e todos os seus atores, mortos barbaramente pelos gigantes. “La
favola del figlio cambiato”3 seria o divertimento oferecido pelos gigantes aos seus
servos por ocasião de uma festa de casamento. Os servos, já bêbados e não compreendendo
absolutamente nada, exigem outro espetáculo, explodindo por fim um pandemônio.
Ilse é agredida e assassinada violentamente, Spizzi e Diamante, ao tentar
defendê-la, também são mortos. O IV momento (ou terceiro ato) nunca foi escrito.
Pirandello, antes de morrer, narrou sua visão ao seu filho Stefano. A peça deixada
incompleta aponta a dificuldade do autor em resolver o conflito final entre a arte de
Ilse e os embrutecidos gigantes (que conhecendo as cartas de Pirandello para Marta
Abba, podemos dizer que se trata de uma referência aos empresários, público e crí-
ticos da época4). O momento do combate definitivo foi permanentemente adiado
demonstrando a dificuldade do autor em achar uma solução em face à inevitável
tensão/colisão entre o teatro, concebido como arte para iniciados, e as exigências
concretas do fazer teatral. “Os gigantes da montanha”, em sua incompletude, é a
expressão deste conflito e também o confessar da impossibilidade do poeta em superá-lo.
Diz Cotrone: “Eu quis dar à senhora, Condessa, uma prova que a sua Fábula
só pode viver aqui; mas a senhora quer continuar a leva-la em meio aos homens. Que
seja!” (op. cit., p.107-108). O texto, que deveria ter uma conclusão no IV momento,
termina com o barulho dos cavalos dos gigantes descendo a montanha:
O CONDE: (colocando-se à parte com a Condessa) Você não está com medo,
Ilse? Está ouvindo?
SPIZZI: (aterrorizado, aproximando-se) As paredes estão tremendo!
CROMO: (aproximando-se aterrorizado também) Parece a cavalgada de uma
horda selvagem!
DIAMANTE: Estou com medo! Estou com medo! (op. cit., p. 108-109).
Como observa o Eduardo: [...] essa questão da sobrevivência é difícil mesmo, é muito
complicada. Temos atividades econômicas no teatro sempre caminhando no fio da
navalha. Sorte em um determinado momento, quando estávamos atravessando um
período difícil, que chamamos de tempos heroicos, o grupo teve a sorte de viajar para
o exterior, travando contatos com grupos da América Latina (especialmente Peru, Colômbia,
Europa e...) ligados a Teatro Antropológico, Eugenio Barba, Grotowski... Esses
grupos tinham uma organização de trabalho muito conectadas às comunidades em
que eles viviam. Eram grupos, [...] que estavam abandonando os grandes centros e
buscando centros menores, buscando se desenvolver e constituir uma sede. Longe
desses grandes centros, estes grupos se apresentavam, promoviam festivais de teatro
para estas pequenas comunidades... Acho que, de certa maneira, este encontro com
esses grupos nos ajudou a perceber a importância do teatro estar conectado com
a comunidade em que ele vive e com as comunidades que ele encontra com mais
frequência. Acho que nós artistas temos um desafio muito grande que é, também,
³ Texto do próprio Pirandello que aqui em Os gigantes da montanha se passa
como o texto do jovem poeta morto, apresentado de forma itinerante pela companhia
de atores da Condessa.
4 Cf Martha Ribeiro, Luigi Pirandello: um teatro para Martha Abba. São Paulo:
Perspectiva, 2010.
Um teatro feito da matéria dos sonhos: Os gigantes da montanha e o
Grupo Galpão
195 Urdimento, v.1, n.24, p186-196 julho 2015 Martha de Mello Ribeiro
provar à comunidade que o teatro e a cultura são um valor em si para a comunidade.
[...] É uma luta, as vazes achamos que caminhamos para frente, às vezes pensamos
que estamos perdendo essa luta, mas vale a pena lutar.
E completa:
Eduardo: [...] o teatro de rua foi uma saída para o Galpão. Nós não éramos artistas
conhecidos, a gente não tinha como ocupar as casas de espetáculo, então a nossa
saída foi: “Queremos fazer teatro, vamos fazer teatro na rua, teatro de rua”. [...] a rua
economicamente foi importante pro Galpão, porque a gente ia pra rua, apresentava e
as pessoas começaram a conhecer o trabalho do grupo. E, de repente, uma associa-
ção de bairro, um sindicato, uma prefeitura comprava um espetáculo por um cachê
que era irrisório, mas que de certa maneira aquilo ali foi nos dando... Quer dizer, o
caminho... não existe um caminho pronto, o caminho quem faz é o caminhante. A
gente tem que encontrar o nosso caminho.
O teatro só existe se enfrentar os gigantes da montanha. Ainda que isso não
signifique uma garantia para sua sobrevivência, deve ser feito. Pirandello sabia disso.
Concluímos nossa reflexão com a certeza de que o final deixado incompleto, poucos
segundos antes do abrir das cortinas e da entrada de Ilse no palco para enfrentar os
gigantes, é muito significativo para entender o fazer teatral como um canto de experiência
que nos faz tremer a carne toda noite, a cada apresentação. É um salto, sem
paraquedas, no abismo. E como todo salto, não se tem nenhuma garantia no que vai
dar... Pirandello também não sabia.
Referências
BENJAMIN, Walter. O Narrador. In: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura
e história da cultura. Obras escolhidas. V. 1. Editora Brasiliense: São Paulo,
1985.
LARROSA, Jorge. Tremores. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2014.
PIRANDELLO, Luigi. I giganti della Montagna. In: Maschere Nude, vol. IV, 2007.
PIRANDELLO, Luigi. Lettere a Marta Abba. Milano: Mondadori, 1995.
PIRANDELLO, Luigi. Os gigantes da montanha. Tradução Maria de Lourdes Rabetti.
Rio de Janeiro: 7Letras, 2013.
RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível. Tradução Mônica Costa Netto. São Paulo:
Editora 34, 2009.
RIBEIRO, Martha. Luigi Pirandello: um teatro para Marta Abba. São Paulo: Perspectiva,
Um teatro feito da matéria dos sonhos: Os gigantes da montanha e
o Grupo Galpão
Martha de Mello Ribeiro Urdimento, v.1, n.24, p186-196 julho 2015 196
2010.
RIBEIRO, Martha. Para um Teatro Performhttp://www.revistas.udesc.br/index.php/urdimento/article/viewFile/1414573101242015186/4509
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