segunda-feira, 31 de agosto de 2015

GRUPO GALPÃO: CRÔNICA DE LONDRES

Autor: Arildo de Barros http://www.grupogalpao.com.br/blog/
Chovia intensamente em Londres no dia 5 de julho de 1996. Desde muito cedo, sob a lona de um circo úmido e frio, montado dentro doBattersea Park, a equipe do Grupo Galpão esperava pelo público que viria ali para a estreia do nosso “Romeu e Julieta”. Depois do surpreendente sucesso da semana anterior, no festival “Theater der Welt”, realizado naquele ano em Dresden e em outras cidades adjacentes da Alemanha ex-Oriental, nossa expectativa era grande. Foi, portanto, decepcionante iniciar o espetáculo com cerca de sessenta espectadores, a maioria deles brasileiros. Ainda não sabíamos, ouvindo os primeiros acordes de “Você gosta de mim, ó maninha?”, que no meio daqueles gatos pingados se encontrava um grupo de diretores do Shakespeare’s Globe Theatre, a centenária companhia comandada, na alvorada do século XVII, pelo próprio bardode Stratford-upon-Avon. Assim que cessaram os aplausos finais, aqueles circunspectos senhores e senhoras rodearam os atores, o diretor Gabriel Villela e nossa convidada, a crítica Barbara Heliodora. Entre atônitos e comovidos, manifestaram seu encantamento pelo frescor e pela qualidade do que acabavam de presenciar. Um deles chegou a afirmar que os ingleses haviam convertido o seu Poeta em peça de museu, e que fora preciso aparecer ali um grupo da América Latina que resgatasse para eles o caráter festivo e popular do teatro de Shakespeare e que, enfim, lhes ensinasse de novo a encená-lo. As consequências desse encantamento não tardaram muito.
New Globe Theatre foi inaugurado em 1997, na mesma Southwarkonde se erguia o original seiscentista. Entre seus novos projetos, havia o “Globe to Globe”, que programava, para cada verão londrino, a apresentação de uma das peças de Shakespeare, produzida em algum país do mundo e cuja montagem envolvesse elementos da cultura desse país. Nos primeiros anos, foram exibidas ali três obras do bardo, provenientes da índia, da África do Sul e de Cuba, todas ignoradas pelo público. Esse fracasso ameaçava a sobrevivência do projeto. E foi assim que o Grupo Galpão foi convidado a voltar a Londres, dessa vez para se apresentar no “Vaticano da fé Shakespeariana”.
Em 11 de julho de 2000, estreamos “Romeu e Julieta” noShakespeare’s Globe, sob a sombra do pavilhão nacional do Brasil, hasteado na mais alta torre daquela arquitetura. O começo da noite estava ainda claro, e, de novo, úmido e frio. O elenco entrou pontualmente às 20h, pela porta da frente do teatro a céu aberto, e abriu caminho para o palco no meio do público, executando a versão instrumental de “Flor, minha flor”. É muito curioso observar, no DVD do espetáculo, a expressão tensa e desconfiada dos espectadores ingleses, diante daquela trupe incomum, morena, maquiada como palhaços e vestindo coloridíssimas roupas puídas, entoando uma estranha canção de ritmo incompreensível, e depois comparar essa imagem com a dos mesmos espectadores ao final da apresentação, acompanhando a saída dos atores através do mesmo caminho pelo qual haviam entrado. Sua expressão era, então, a de quem tivesse, durante uma hora e meia, experimentado o elixir da felicidade. Sorrisos abertos, olhos brilhantes, excitação à flor da pele. E mais: marcando com palmas o ritmo, agora familiar, daquela estranha canção do sul. Havia até quem tentasse cantar junto: “Flor, minha flor…”. A equipe doGlobe nos recebeu no palco com champanhe. Estava salvo o “Globe to Globe”.
A temporada, de catorze récitas, se estendeu até o dia 23 de julho, sempre recebendo a mesma calorosa acolhida do público, em que aos londrinos se misturavam turistas de toda a Europa e, obviamente, do Brasil. Compareceram até um casal de noivos com todos os padrinhos e convidados, para celebrar suas bodas diante do mesmo frade que abençoava a união dos protagonistas. Emoção e alegria povoavam os bastidores, onde cruzávamos com técnicos e funcionários da casa, igualmente eufóricos e tocados pelo espetáculo. Encontrávamo-nos também por ali com os elencos que dividiam conosco todos os espaços e camarins. Diariamente, às duas da tarde, ocorria no mesmo palco, uma sessão, em dias alternados, de “Hamlet”, protagonizado pelo grande ator Mark Rylance, então diretor artístico doShakespeare’s Globe, e “A tempestade”, com o Próspero na pele de ninguém menos que Vanessa Redgrave. Pois a grande estrela se empenhou em assistir ao nosso “Romeu e Julieta”. E quando lá esteve, Vanessa se fez acompanhar de sua irmã, a também atriz Lynn Redgrave, e de sua mãe, Rachel Kempson, que aos noventa anos, rememorava suas atuações na obra de Shakespeare: quando menina, havia encarnado Julieta, mais tarde, a Sra. Capuleto, e já idosa fora uma respeitável Ama. Numa noite especialmente fria, as três providenciaram bons cobertores, que as mantiveram quentinhas nas desconfortáveis poltronas de madeira de seu camarote.
Michael York foi mais um astro do teatro e do cinema que se entusiasmou com nossa apresentação. Já nos camarins para saudar os atores, York, que fora o Teobaldo no célebre filme de Franco Zefirelli, entregou ao Chico Pelúcio, que ali fazia o mesmo papel, um foto com a dedicatória: “De um Teobaldo para outro”. E indistinto no meio da massa, só o soubemos anos mais tarde, encontrava-se também o encenador canadense Robert Lepage. Em 2003, contratado para dirigir um mega espetáculo no Cirque Du Soleil, Lepage exigiu, para protagonizar sua obra, “uma atriz brasileira que vi em Londres, no papel da Ama de ‘Romeu e Julieta’, fazendo o público rir e chorar ao mesmo tempo”. E lá se foi a nossa Teuda Bara brilhar por três anos em Las Vegas.
Anos depois desses eventos, um conhecido meu e sua mulher, passando por Londres em viagem de núpcias, foram conhecer o Globe Theatre, então fora de temporada.  Incógnitos em meio a um grupo de turistas, foram guiados em sua visita por uma daquelas simpáticas senhorinhas que se dedicam como voluntárias a esse trabalho. A certa altura do trajeto, a guia comentou que muitas coisas espantosas já haviam ocorrido naquela casa, mas o mais extraordinário acontecimento dos últimos anos fora a passagem de um grupo brasileiro, com uma versão absolutamente bela e original de “Romeu e Julieta”. E, para orgulho e comoção do jovem casal mineiro, apontou na parede o cartaz de divulgação do Grupo Galpão.
Corte para 2012, ano das Olimpíadas de Londres. Mais um projeto do Globe envolve montagens das obras de Shakespeare pelo mundo. Na programação da maratona cultural pré-olímpica, a ideia era levar à casa do maior dramaturgo da história suas trinta e sete peças, montadas em trinta e sete países do mundo e em trinta e sete línguas diferentes. Enquanto se pesquisavam, por todo o mundo, as produções recentes que atendessem às exigências do projeto, um grupo de técnicos e funcionários do teatro trouxe uma sugestão à equipe curadora do evento: o “Romeu e Julieta“ só pode ser aquele do Brasil. Esse voto, espontâneo e rigorosamente democrático, foi acatado.
O Galpão fez de novo suas malas e mais uma vez partiu em direção a Londres, para mais uma vez conquistar londrinos, brasileiros que para ali convergiram de diversos pontos da Europa, turistas do mundo inteiro e todo um conclave de artistas e críticos de teatro oriundos dos cinco continentes. E assim se fez. Missão cumprida, voltamos para casa, para o trabalho, para o risco, para os desafios. Para a vida real.
Aos quase trinta e três anos de existência, o Galpão coleciona um vasto repertório de lembranças, recolhidas em sua passagem por palcos, ruas e praças de todo o Brasil e mais dezesseis países. Viagens curiosas, lugares insuspeitados, encontros insólitos, profundas emoções, afetos que permaneceram e até grandes aflições que o tempo cuidou de converter em divertimento. Lembranças todas boas, ótimas em sua maioria. Mas a vitoriosa conquista do santuário shakespeariano, considerados todos os seus significados, ocupa, na preciosa coroa dessas memórias, a posição central e única do mais esplêndido diamante.
(Arildo de Barros)
Em 12-04-15
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-> ">Para Barbara, da sua “patota”

O bardo nos uniu de uma maneira forte e indissolúvel. Lembro-me de nossa primeira temporada de “Romeu e Julieta” no parque de Battersea, em Londres. D. Bárbara acompanhou toda a temporada e ainda nos deu o luxo de repartir conosco seus conhecimentos, numa visita a Stratford-upon Avon.
A viagem, feita num micro-ônibus, teve direito a uma aula completa sobre a vida e a obra de Shakespeare. De pé, no desconfortável veículo, ela nos explicava os tortuosos caminhos das intermináveis guerras dos York e dos Lancaster. Sem dar a mínima para a bucólica paisagem rural britânica, ela se entusiasmava e nos deleitava com sua paixão pelo teatro e, especialmente, por Shakespeare.
Nossa relação de respeito, amizade e paixão pelo teatro começou um pouco antes, precisamente no ano de 1993, quando fizemos nossa estreia carioca de “Romeu e Julieta”, no Centro Cultural do Banco do Brasil, em parceria com o espaço do Centro dos Correios. No sábado da mesma semana, numa coluna do jornal “O Globo”, ela escreveu sua crítica entusiasmada da montagem, com o título preciso de “Fidelidade na infidelidade”.
Ela cantou em sua crítica aquilo que os ingleses repetiriam com frequência nas nossas subseqüentes três temporadas em Londres: que o espetáculo, em sua atrevida concepção brasileira do texto original, trazia uma leitura muito viva sobre o caráter popular da obra de Shakespeare.
Daí em diante, nossos encontros passaram a ser frequentes. Sempre que fazíamos temporada no Rio de Janeiro, era religioso que marcássemos nossa sopa na sua casa, no largo do Boticário. E sempre nos divertíamos imensamente com suas histórias, sua fúria contra o mau teatro e sua paixão pelo ofício e pela vida. Era o encontro da “patota”.
Mesmo quando alguns dos nossos espetáculos não a agradavam muito, nós nunca deixávamos de honrar nosso encontro com a “patota”. Crítica honesta e fiel a seus princípios, nunca se isentou de nos malhar, quando assim acreditava que deveria fazê-lo. E, independente, de qualquer coisa, sempre nos encontrávamos com um enorme carinho e um tremendo respeito mútuo.
O teatro perde uma grande apaixonada, quixotesca e furiosa defensora.  D. Bárbara vai nos fazer uma enorme falta, sobretudo, pela sua inteligência e clareza ao expor seus pontos de vista e colocar os pingos nos “is”, sempre sem papas na língua.
Tricolor de coração, era uma mulher adorável, sem nenhum ranço de erudição pedante, apesar da vastíssima cultura. Conversava de tudo, sempre com muito humor e espontaneidade. Nada a deixava mais satisfeita e entusiasmada do que um bom espetáculo. E nada a deixava mais contrariada do que um teatro displicente e mal elaborado. Em sua braveza crítica, tinha uma ironia e uma malícia deliciosas.
Nosso último encontro se deu numa noite fria, em pleno aterro do Flamengo, quando D.Bárbara, já com a saúde debilitada, garantiu com antecedência um dos assentos da frente, para assistir ao espetáculo “Os gigantes da montanha”. Foi em outubro de 2013. Lembro-me dela saindo, às pressas, feliz da vida e correndo para ainda ter tempo de escrever uma crítica do espetáculo, que pudesse ser publicada na mesma semana. O amor pelo teatro a mantinha viva e plena de vigor,   apesar da debilidade pulmonar que ia consumindo-a.
Clara, lúcida e extremamente generosa, deixa para o teatro brasileiro um legado teórico e de crítica que vai nos fazer muita falta. Estamos mais pobres e mais órfãos. Para mim, fica a lembrança, sempre viva, de D. Bárbara subindo as escadas para pegar um livro escondido, quase inacessível, no ponto mais alto da estante de sua maravilhosa biblioteca, do sobrado do Boticário, para nos mostrar alguma boa peça ou estudo crítico. Sua vontade de ensinar, de servir, de falar e venerar a arte do teatro era incomensurável.
É a vida…cumprimos nossa sina. Mas que merda! Ah, quer saber, muita MERDA D. Bárbara! Viva sempre o teatro. Da sua “patota”.

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